sexta-feira, 12 de maio de 2017

Sobre a minha relação com você

O vazio que há quando seu nome vira som.
Entre o amargo gosto do sofrer e do sorrir: tens razão em não dizer, não fluir.
Sexta-feira no bar lhe vi. Por instantes não senti, notei-te escura, sem brilho ao lado de uma porção de pessoas. Em prontidão a mijar no mictório enferrujado mirava as bolinhas brancas e não mais te via, mas ali na ausência eu sentia.
Talvez a presença que habita, aquela clareira que abre o negro das folhas como a urina que espalha o que molha, esteja sempre lá a partir do momento em que abriste-a em minha vivência. E tal presença me conforta mais do que concretamente ter-te em meu campo de visão. Ver-te é pesado demais, carrega, enche e ainda assim é não, é choro seco, é vão.
Resta uma pergunta: isso é orgânico?
Pressiono esse sentir que paira equilibrado por sob meu estar e espremo uma sensação que chamo de você. Esse você se distingue da gama de variações as quais me permito fabular sob meu próprio entender, ainda assim não é precisamente você, obviamente você ainda senta no bar de pernas cruzadas com a meia calça marcando na ponta da cadeira; aquele númeno de batom que contraria as regras empíricas: não é aquilo que abre o espaço em mim, mas é presente.
No jogo entre o fisiológico e o fenômeno sobrevive uma dialética que alimenta uma pulsão interna que na maioria das vezes é mais substancial do que propriamente você. A essa dialética chamo você-em-minha-vivência. Nesse mundo subjetivo, onde entendo um eu não isolado mas constantemente moldável pela vida concreta, sofro um sofrimento sem dor, um vazio de um dizer.
O vazio que eu ouço quando seu nome vira som.
Um vazio que preenche quando essa imagem de você reaparece perante meu olhar, mas que não se mantém por ser em demasia, sempre transbordante escapa.
É isso, você, inspiração.

terça-feira, 14 de março de 2017

Ensaio sobre as Relações Humanas



  Permiti-me notar, nas entrelinhas da ansiedade, um casulo de intenções latejando sentimentos aos quais o refugo de experiências vividas me absteve de conscientiza-los. Sofro do mau do século, estabeleço diretrizes de controle dos afetos do cotidiano para me afogar na frivolidade densa das formas de comunicação virtual. Evidencio a contradição. Despejo os sentimentos organizados da vida real nos acasos incontroláveis das relações virtuais. E não sinto nada líquido, tudo é pastoso demais para diluir. A espera entre uma conexão-um-clique-um-like-uma-solicitação, um diabo gordo enfadonho espreita: consome-se qualquer delírio de conforto social. Não sei viver nesse imediatismo procrastinado. Só percebo contradições.
  Outrora havia o jogo social, o flerte inflamado por ocasiões do cotidiano, com seus acasos com certeza, porém de certa forma estabelecidos, aos quais as beiradas podiam ser observáveis, havia uma visão (falsa ou não) das possibilidades alcançáveis, no melhor cenário podia-se evitar desconfortos, constrangimentos, ou na pior das hipóteses o amargo era servido, sabia-se da rejeição no ato, era-te entregue o não! ou talvez o você entendeu errado... Na vida real a dor infligia-se, latejava cedo ou tarde, embora a dor não seja exclusiva do real.
  No virtual há indiferença, mas uma indiferença redimida, livre para assim o ser, e a fenda que ela eventualmente abre não se nota facilmente (se é que se nota); como tudo aquilo que caracteriza um costume, há uma aceitação, uma regra não inscrita, não preciso aceitar uma conexão-um-clique-um-like-uma-solicitação, e a vida segue nas engrenagens algorítmicas. Não há o tradicional papel polarizador do solicitado para com o solicitador, ambas se velam numa condescendência estabelecida, a relação toma ares de solilóquio, e mais uma vez só vejo contradições.
  Na tradicional definição, uma relação se compõe sob a ligação entre dois os mais entes, de forma consciente estabelecendo uma troca de qualquer espécie, psicológica, emocional ou física. E mesmo a indiferença, muito presente ainda, pressupõem tal troca. Todas as partes envolvidas têm consciência do que foi infligido no ato indiferente.
  Em tempos, ter conscientemente uma solicitação negada não afeta nada além do que as expectativas correspondiam. Talvez seja a mesma coisa do que dizer que as relações se dão paradigmaticamente independentes dos tradicionais padrões. O sentido do termo indiferença nesse caso se altera, pois ambos os lados são conscientes e todo o organismo de intercomunicação virtual se dá sob uma estrutura de normas onde laços e afinidades são gerados numa compilação algorítmica indiferente, agora já nesse sentido renovado, redimido. A verticalidade dos mais diversos estabelecimentos de valores sociais agora é uma linha horizontal, se mostra ramificada, tudo é posto sob uma perspectiva completamente diferente da organicidade estrutural arcaica no sentido menos pejorativo da palavra. A relação, então, não trabalha mais com as noções culturais padrões, ela constantemente recria realidades e consequentemente reestrutura sentidos, e muito além da discussão ético-moral, destaca-se a desconstrução artificial (posto aqui simplesmente como antítese conceitual do orgânico sociocultural) das bases de análise acerca das inter-relações sociais da internet. A técnica aqui não é mais condicionante (como pensava Heidegger), ela evoluiu e se diluiu na complexidade das interconexões imensuráveis que é o organismo cibernético da intranet global.
  Portanto não se pode mais falar de duas coisas separadas, o real e o virtual, e isso se dá simplesmente porque não se pode mensurar as dimensões, estabelecer as discrepâncias, pois um afeta o outro em um ponto onde a intersecção se perde na constelação de conexões globalizadas, e tais conexões abrangem o histórico social, o cultural, portanto a manifestação do humano. Eis talvez o novo cogito de nosso tempo: Tudo afeta tudo, logo sou tudo. Em uma espécie de transmutação do Uno espinosiano, resta-nos uma única questão: o que sobrou das relações que agregam e desagregam, daquilo que Espinosa chamou de relações alegres, e relações tristes, a sua ética? Como se dá a noção de unidade nesse todo novo? 
  Nesse momento me atenho ao que expus acima, talvez as análises devam partir sob o signo redimido da indiferença. Porque sabemos que somos indiferentes e somos indiferentes em assim saber. Sabemos que somos contraditórios e somos contraditórios por assim saber.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Sobre amor e tempo: um diálogo conjugal entre dois filósofos

  Foi no final do verão; onde os dias prolongavam o vento quente que dispersava-se no horizonte de um outono tardio.
  “Como seria se fosse imutável?” ela sussurrou descabida, não saberia dizer se acordou de um sonho ou se permanecia dormindo.

  Ele ainda dormia.
  Levantar quando o tempo incondicionado se ajusta a lógica de um pensar que não poetiza, e enjaulado geme as cinco, seis, na sorte, dez para as 7 da manhã: vivemos um período onde linhas do tempo vêm antes que o café preto.
  Acordara perdido, suando o resto de calor no pescoço enquanto cobria as pernas que vazaram o edredom que ela consumia desigualmente. O sol abria partículas de espaço na veneziana furada. Não queria levantar, naqueles momentos achava que a vida não valia a pena, ou que a verdadeira vida se dava no dormir, como uma consciência que se personifica em meio a um mar de inconsciente, viver só seria possível precisamente nos instantes entre notar-se acordando enquanto ainda desvencilha-se dos sonhos esfumaçados.
  Nos buracos de luz a mulher ao seu lado sorria. Impessoal como um estranho até se fazer compreensível. Demora-se um tempo para assimilar sentimentos; tudo se arrasta antes do café.
  “E se tudo fosse imutável?” ela insistiu agora que sabia que a escutavam.
  “Imutável?” ele indagou.
  “Sim”, ela reforçou e prosseguiu: “Se tudo fosse permanente. Sereno. Estável. Se o tempo andasse conforme nossas ações, relativos ao espaço não à sobrevivência”.
  “Você diz como Einstein previu, essas merdas?” ele respondeu sorrindo e continuou: “Se tudo fosse imutável, da forma como te amei tempos atrás te amaria agora? Nunca poderia te odiar, chutar seus sapatos pelo chão? Ou sentimentos não entram como ações no espaço da sua tese?”
  Nesse momento ela se levantara, seus seios ainda descobertos tinham marcas da borda frisada do lençol, formando mosaicos, e isso era tudo o que ele conseguia pensar enquanto ela prendia os cabelos castanhos.
  “Não digo em Einstein e essas merdas, digo como se o tempo fosse livre do nosso tempo. Se vivêssemos fora da função quantificante de nossos marcadores de tempo, de nossos relógios que guiam nossos calendários que guiam nossos dias que guiam nossos fins de semana que vivem à sombra do despertador, das dez pras 7 da manhã da segunda-feira” disse ela em um tom sereno, pausadamente, com uma sobriedade incomum.
  “Você não quer acordar?” respondeu ele condescendente. Ela manteve-se em silêncio. Caminhou até a cozinha que, pelo tamanho do apartamento, podia ser vista da cama onde ele permanecia deitado, criando coragem para levantar.
  Botara a água do café no fogo. Seus olhos estáticos desfocavam o fogo azul alaranjado que saia da boca do fogão, como quem olha para algo porque não consegue anular os sentidos, ela olhava mas não queria ver, permanecia imersa em abstrações.
  Ele, já de pé, se escorava na porta da geladeira, predisposto a pensar como ela:
  “Será que tudo é mutável? O sol pergunta pelas horas antes de nascer? O sol se põem em função de nós. O cachorro dorme quando escurece e acorda quando amanhece. Tudo me parece imutável exceto você quando se pergunta pelo sentido do tempo”.
  “Então, tudo parece inquieto porque eu necessito de silêncio?” indagou ela, agora desperta da imersão subjetiva de suas próprias sensações, vestindo uma camiseta branca, com medo do calor do fogão ela coava o café que ficara pronto. Servira um pouco para o dois em xícaras de porcelana, o vapor do café embaçara o óculos que ele havia posto num puro costume pois eram apenas de leitura. Ela bebericava como um beija flor bebe o néctar que lhe servem em suportes de água pendurados nas varandas, tinham o hábito de beber café sem açúcar.
  Por um instante olhavam para o centro da mesa ambos perdidos em seus próprios pensamentos.
  “Você me ama de maneira diferente do que quando nos conhecemos?” ela perguntou insegura com um sorriso comedido.
  “Seguindo o raciocínio que estranhamente construímos, te amo gradativamente, a medida que, indagando sobre a evolução historial do amor num período de tempo específico de nossa vida, o amor só se mostra como amor a medida que o penso; nasce em relação a minha necessidade de pensá-lo, e a manifestação que dá corpo ao amor cresce diametralmente equivalente ao quanto penso sobre ela, pois se em dado momento tudo em mim parece não te amar é porque preciso te amar”.
  Os dois se entreolharam. Ela mantinha um sorriso ingênuo, comedido; ele esboçava um semblante sereno, amoroso.
  “E você acredita nisso?” perguntou ela após matar o resto de café, já gelado, na xícara.
  “Sobre fé nada sei” respondeu ele.
  “Se assim o for, poderíamos voltar para a cama e manter o tempo imutável enquanto nos amaríamos até o sol se pôr para nós enquanto ainda brilhante insensível aquém?”.
  “Se assim o for, sim, poderíamos”.
  Foi no final do verão, onde o despertador despertava sem sentido, às dez para as 7, seguindo o fluxo de uma rotina inconsciente.
  Era sábado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma vida a se desperdiçar

Aquele desconforto, um esboço de sentimento que não se manifesta, permanece inócuo, como uma possibilidade, sempre uma possibilidade.
Uma falta de coerência lhe vem frente a ela, sempre a imagina perto, desfiando com os dedos o cabelo negro, enrolando o que era pra ser liso; ele insiste em sustentar, na tentativa de tornar sólido aquele fel que é imaginá-la: uma vida a se desperdiçar ao lado dela num sofá.
Levanta pra fazer café. Imagina que ela prefere doce, forte, coado a mão jamais cafeteira, uma levianidade digna de um pensar sobre ela.
Sentir-se conjugue só.
Na cena típica onde o buquê de flores levita sob o salão enfestado de vestidos de cetim, ela sempre evita agarrar qualquer coisa, para ele comprometer-se é perder-se, fato que reforça em seu âmago a mesma justificativa que o torna sóbrio perante o fato de estar solteiro aos vinte e sete anos de vida social. Comprometer-se, no momento, somente ao fenômeno de pensá-la.
Na melhor das hipóteses, no melhor dos cenários, ele ira cruzar os passos com os passos de sapatilha errante dela; aquela hipótese onde tudo já é premeditadamente dito, tudo é som, a linguagem pré-humana do olhar figurara os símbolos de um diálogo que já ocorrera, no interior inatingível de ambos.
Não resta mais nada além. Sem linguagem ficamos ambos no olhar vago de um afeto eminente porém amordaçado, vagando na articulação de um amor inconjugável, por isso infértil na concretude do real, mas fértil na imaginação.
Novamente uma vida a se desperdiçar ao lado dela.
Por esses longes todos...
Por um fim.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O Nó e o Nada

    Constantemente nosso personagem sentia a necessidade de tornar-se ativo. Em um mundo onde o mais novo acessório da moda é o tempo, não produzir nada produzia em nosso amigo uma sensação vigorosa na boca do estômago, como uma amarga queimação, uma azia psicossomática que outrora em noites chuvosas de domingo quase se disfarçavam de melancolia, mas que na maioria das vezes era somente um sentir-se inútil perante o mundo que acordava cedo para produzir, enquanto o sono a ele batia com o sol querendo acordar, e seu café da manhã era quase almoço.

    A culpa de nada fazer era tão inebriante quanto a serena calma de espírito que fazer nada lhe proporcionava; costumava ele dizer, roubando uma frase por ele mal entendida de Sartre, que aquele nada “possuía substância”: um filósofo das tardes livres, sua avó o descrevia; “um mendigo com moradia” seu vô xingava.

    O fato era que a vida de nosso personagem conduzia-se com um pé só na corda bamba do fazer e não fazer, querendo fazer ao mesmo tempo que não tinha forças para desenvolver; um filósofo de bar, (no intervalo de um dos cursos universitários que o nosso referido começou pra depois terminar) uma vez definiu tal angustia: uma procrastinação ontológica. As más línguas diziam “é vagabundo da sociais”. Todo o falatório não fora capaz de penetrar na pele líquida de nosso personagem que dificilmente abria seu problema para qualquer um, sabe-se do poder da cerveja, mas desse fato poucos sabiam de fato.

    Outrora tentou “ler” tudo à luz de um marxismo arranjado de simpósio de fim de semestre, dizendo que o trabalho no apogeu do capitalismo tardio perdeu a identificação com a praxis formadora do humano num falatório que era bom pra filar umas bolsas da capes, mas que no caso do nosso amigo não suprimiam a ânsia que aquilo tudo causava no cotidiano concreto de relações diversas que era a sua vida e a constante necessidade de manter-se ativo perante ela.

    Numa tarde onde o sol suava às bicas pela camisa de nosso personagem, formando círculos de suor que lhe causavam um desconforto social, surgiu a necessidade de sair “pra rua”, encarar uma fila de banco, aquilo que pra ele era o roteiro mais característico do brasileiro comum, inquietava-o a constatação de que ninguém fizera um retrato do Brasil popular contando a vida do brasileiro na fila do banco, no cinema ou na literatura, mas ele também sabia que deixara pra trás muitos livros e filmes, logo não gastava muito tempo nisso.

    Naquela tarde o bendito pegou uma pastinha azul com os afazeres e entrou no prédio colorido da agência bancária que sempre inicialmente lhe causava um efeito agradável, aquele ar-condicionado trazendo o céu na terra do sol que queima a alma, sensação que dura pouco ao vislumbre do emaranhado de pessoas em pé constatando através do relógio no celular o tanto de tempo desperdiçado naquela fila toda sem fim. Achava ele que se deparar com aquilo tudo era como ver a pessoa amada indo embora lentamente pela porta do que antes era sua dignidade.

    “Ao menos haviam cadeiras” pensou nosso personagem, confortáveis cadeiras de couro batido. A senha dizia O-435, “o de otário” ele sempre pensava jocoso, mas que representava outros serviços além dos outros serviços que para ele eram todos os mesmos serviços de banco.

    Após alguns minutos encarando inconscientemente a tatuagem no pé da mulher no banco da frente, nosso amigo notou uma loira em pé no fundo da agência, onde haviam diversas cadeiras vagas, o que lhe causava estranheza, depois de trinta minutos ninguém suporta ficar em pé no banco, mas a moça dos cabelos loiros ali estava, em pé com aquilo que ele definira como um “coque estranho” preso com um lápis de cor, fato que o fez supor que a moça era professora, de arte quem sabe, talvez comerciante, ou tenha cinco filhos na conta; o fato era que a mulher não se cansava em ficar em pé. Passado um tempo, onde nosso personagem gastara o tempo já perdido no banco olhando os mínimos detalhes que emergiam daquela mulher, notou ele que a moça sempre olhava para fora, e viu que havia um carro esperando-a, com um pouco mais de tempo notou que o carro mantinha-se ligado, o que para ele era uma ilusão tremenda achar que ela sairia a tempo de valer largar o motor frigindo. Mas a situação toda o fez refletir sobre outro prisma acerca daquilo tudo.

    Havia estampado naquele carro a mesma necessidade de não perder tempo. A sensação se mostrava aparentemente idêntica, onde há a mesma vontade de manter-se ativo, de produzir, onde a sensação do motor ligado trazia um alento àquela espera toda da loira do coque exótico dentro do banco. E toda essa reflexão lhe proporcionou aquilo que outrora não sentira a muito tempo, antes desse dilema despertar em nosso personagem aquela melancolia toda perante o nada, onde a inocência da infância expelia toda a noção de comprometimento perante o mundo ativo, uma inocência que para ele morreu quando ele identificou a maturidade em meio as outras coisas que apareceram no vocabulário cotidiano assim que ele completou seus tantos anos que afastavam-no da adolescência.

    Com efeito, toda a cena dentro do banco, construída em seu mundo abstrato de correlações ocasionais, lhe afastava, pela primeira vez em anos, daquela azia psicossomática que descrevemos até então, e ao constatar isso nosso personagem notou que ali onde o mundo se vê obrigado a esperar, forçados a gastar o precioso tempo fazendo nada, o que para a moça do coque e o seu carro ligado causavam um tremendo desconforto perante o tempo de produção perdido, para nosso personagem aquilo tudo não causava desconforto algum, e de quebra se sentia aliviado; ali sentado na poltrona de couro, à anos-luz do O-435, ele sentia-se em paz perante o mundo que lá fora o oprimia. Na agência do banco que forçava o mundo a nada fazer como uma consequência intransponível do fazer algo – pois todos eles necessitavam mediante seus afazeres fazerem nada na fila do banco para que assim pudessem voltar a produzir – o dilema de nosso personagem se diluia em um mero devaneio, a paz voltava a reinar no devir de sua existência, sentia que fazia algo e aquele algo era nada fazer, mas que comungava com o mundo de pessoas ao seu redor, o trazia mais próximo da moça do coque loiro, afinal ele estava fazendo algo, e naqueles preciosos instantes, antes de ser atendido e estar livre para ir para a casa, tudo fazia sentido: nada.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O suficiente


  O desenrolar do laço preso no bracelete, um laço azul de cabelo preto, um bracelete sem cor preso no braço moreno: minha relação com ela.
  ana no fundo da sala. mariana. Noites em claro, o crase na minha fugaz autoestima, me impelindo ao passado, ao que já foi dito, um niilismo lindo e belo, um bom gosto pra sapatos, um buraco na vastidão dos meus vinte e oito anos.
  Furtava a tiros meigos de beleza meu lanche no colégio. Não suportava a ideia quinze minutos depois, mas caminhava com ela de volta pro bairro. O singular sentimento que te atrai enquanto te repele.
  Estruturei minha subjetividade na dicotomia tê-la e não tê-la, subjuguei muitas vezes o bom senso (prova de que dúvidas nunca são metódicas), cresci na sombra do vestido dela sem notar que o sol continuava a queimar; o universo era maior do que aquelas pernas grossas, só percebi quando ela me disse que estava grávida, onze anos depois.
  Toda a narrativa estupra a contingência. Toda a contingência estraga os prazeres do narrar.
  Desperdicei muitas horas sentado no vaso fechado do banheiro tentando entender mariana. Levava uísque às vezes, pra disfarçar, um alento. Depois de tantos anos vejo ana no fundo da sala sendo mariana. Do balé, da saia do crochê, do cabelo desgranhado, que perdia o ônibus na frente do prédio. Vejo ela na menina que ponho no berço todo dia. Deixo ela na menina que tiro do berço e vejo crescer, da noite pro dia. Carne da minha carne, fruto de outro ventre, mariana: o laço preso no bracelete. Sem intenção determinada, uma união causal, um lapso de confusão que não consegue mais se desligar sem estourar-se.   Como toda causalidade, um hábito humeniano. Mais denso que um vício, porque todo o hábito é mais denso que um vício, não se faz sentir até desalojar todo um sentir autêntico sem abstinência, sem recuperação.
  No fim do texto percebo que fugi do amor, e sinto a necessidade de pô-lo em relevo.
  Assim como sem mariana não há fundo nem texto, sem ela não sou, e isso é o suficiente.

sábado, 29 de agosto de 2015

Era usual, cândido e infeliz

  Era usual, cândido e infeliz.
  Pedia café expresso sem açúcar enquanto ela encarava descaradamente o garfo torto na toalha verde musgo. Admirava a capacidade tênue que ela tinha em calar-se por mais de quinze minutos quando resolviam sair pra comer algo na vida lá fora, fora da masmorra que era aquele relacionamento dentro daquele apartamento mal decorado, com pelo de gato no tapete felpudo de uma loja de merda de beira de rodovia. Ela sempre deitava nua ali, aquilo nunca fez sentido.
  O drama de se sentir só com um estranho no seu banheiro. Uma solidão assombrada. Ela dormia virada pro oeste, ele o via o sol nascer. Ela comia sucrilhos sorrindo, como se houvesse alegria de manhã no mundo. Aquele tigre laranja esteroide! ele acordava sempre reprimindo a vontade de tudo explodir com aquela felicidade toda antes do metro, do ar, do barulho, da porra toda na vida lá fora. Salvava o café, sempre salvava. O café e o "é de lágrima" que punha pra tocar no mp3 pelo caminho todo.
  "Ela é decente" pensava ele às vezes - "decente a merda, palavra de merda, ela é alguma coisa, uma coisa não, é uma mulher decente depois das nove da noite até às onze, se pá nas sextas..."  todo dia ele escrevia a resenha mental de seu relacionamento no caminho do guichê da Pássaro Marron - teu emprego desolador - escrevia e reescrevia, caçava no fundo da memória aquele afago que lhe fazia bem, aquela lembrança onde a imagem que ele fazia dela ainda era digna de se emoldurar e pregar na parede do hall da casa dos seus vinte e sete anos medíocres como seu vocabulário. Tudo tão medíocre quanto ver tv no domingo com ela fedendo a pipoca de microondas; mas não tão medíocre quando ela sentava no piano exalando um merlot inebriante riscando um Chopin exuberante no teclado que ele comprara naquela viagem pro Paraguai verões passados. "Quando ela veste aquele sapato azul" novamente ele pensava, "aqueles pés nus no piso de madeira, muito além de decente... se pá vou levar um japonês pra ela hoje, é sexta né?... lára lá láa... Maldito trânsito da porra, devia ter pego a magrela... Ééé de lááágrima, que faaço um maar pra navegaar". Deu sete horas, bateu o ponto, "já já acaba" ele dizia suspirando.
  Era usual, cândido mas às vezes feliz.